Um pouco de tédio pelo amor da rotina
Em respeito aos meus queridos 39 leitores (alguns bots), saio do ostracismo para falar da vida, do universo e de tudo mais que li ultimamente
Este condomínio de blogs disfarçado e o Skoob são as duas únicas redes que ainda frequento. Os desatinos da vida adulta me mantiveram afastado de ambas, tanto para fazer os meus registros aqui quanto para indicar leituras.
Não vou falar mais do que um parágrafo da destruição do Rio Grande do Sul, de onde vim e onde morei até bem pouco tempo. Misto de descaso dos governos locais e aquecimento global, só posso ficar triste e lamentar. Outras pessoas aqui falaram melhor sobre isso, mas eu só desejo que alguém aprenda com essa tragédia, principalmente quem mora no RS.
Pesaroso e atarefado, me resta falar das leituras que efetivamente não pararam, até porque parar de ler é quase um sinônimo de enlouquecer, de entregar os pontos para a realidade e perder a única válvula de escape que tenho. Na leitura, posso me refazer em histórias e personagens, fictícios ou não.
Assim, em respeito aos meus queridos 39 leitores (sendo alguns bots), volto a narrar algumas desventuras e indicar as minhas leituras do semestre.
O meio do ano chegou com o tempo sendo devorado pelo universo, e o trabalho em uma biblioteca escolar é árduo e muito, muito divertido. Com um alento que é o período das férias escolares. O trabalho, claro, não se encerra. Porém, sem professoras e alunos queridos, ganhei algum tempo para pensar. A piada geral é que, nas férias, o bibliotecário escolar pode trabalhar de fato.
Com um pouquinho de tempo para pensar, a biblioteca escolar marca um período de grande aprendizado. Já escrevi aqui sobre a importância da biblioteca e não vou te aborrecer novamente com essa catequese. Espero que as pessoas de bom senso que frequentam esse pequeno espaço se lembrem disso, não só em relação aos seus filhos que merecem e que precisam da biblioteca para o seu estudo e aprendizado, mas para elas mesmas na biblioteca pública: um templo que resiste ao tempo como um bunker de civilidade, entretenimento e prazer, além da oportunidade primordial de conseguir informação de qualidade.
Entre os aprendizados desse semestre está o fato de que o livro (ou a informação de qualidade) tem que chegar na mão das pessoas. A leitura tem que ser prazerosa e a informação tem que ser de qualidade. Nada muito fora do que deveria ser a normalidade de um mundo civilizado ou do século 21 que, infelizmente tem ultimamente ganhado um verniz de Idade Média - da pior parte da Idade Média no caso.
A biblioteca como espaço físico propõe um ciclo de vir, pegar um livro (ou informação), parar para ler e entender ou retirar a leitura e depois seguir. É um SoTo Zen da informação e da leitura.
Falo direto para meus alunos e alunas como a biblioteca funciona em outros termos relativísticos e como ela deve (ou deveria) ser um espaço com outra temporalidade. Um lugar para acalmar a mente e evocar o que está bem perdido hoje em dia, mais até que a compaixão. Dito isso, na medida em que os ânimos se arrefecerem, a rotina da vida e da leitura vai aos poucos conquistando seu merecido espaço.
Contudo, falando em rotina, e não apenas da leitura dos alunos que frequentam a biblioteca no mínimo a cada 15 dias, existe uma rotina disfarçada numa biblioteca, porque os pedidos são dinâmicos, as aulas variadas e as ações muito diversas. Uma espécie de ritmo controlado da dança da leitura. E, só para deixar claro, isso não invalida a rotina em si. Pelo menos não a minha.
Quando penso no detestável excesso de momentos históricos que estamos vivendo hoje - talvez eles se repitam de forma cíclica na História -, eu me pego valorizando cada vez mais a rotina de qualquer espécie, com momentos tranquilos ou simples e discretos.
Percebo que a enxurrada de informações e movimentos imprevisíveis constantes estão nos adoecendo. A rotina leve e simples é uma camada de proteção. Diminui as inseguranças e a incapacidade de ter foco. Repare que esse momento nos deixa com uma irritação que transborda no dia a dia. Somos afetados de forma inequívoca; talvez, se levássemos uma vida um pouco mais rotineira e previsível, seria possível que o estresse desse lugar ao tédio.
Falando sério, te lembra da última vez em que tu teve tédio?
Tédio de verdade, aquele tédio raiz, que dá espaço para uma espécie de ócio criativo. Não o tédio de procrastinação com uma ojeriza de fazer algo – ou muitas coisas –, nem dessa paralisação que te acomete quando você precisa fazer várias coisas e não sabe por onde começar. Refiro-me ao tédio genuíno. Ficar de bobeira, feliz, sem compromissos.
Bom, o fato é que trabalhar em uma biblioteca escolar, bater cartão, bem como toda a rotina necessária para chegar e sair da escola em determinados horários, saber o horário do ônibus, o horário de chegar ao terminal, o horário que tu chega em casa, o horário que dá comida para as gatas... tudo isso tem me feito um bem danado. Não chego ao tédio, mas, no período de férias escolares, bem que queria chegar!
Minha mãe dizia que crianças e velhos precisam de rotina. Não sei se minha mãe inventou isso, se foi algum psicólogo quem disse, talvez algum estudo, mas tento ensinar um pouquinho os meus alunos e alunas a ter calma, não desprezar a rotina e valorizar o foco.
A oportunidade de ter controle, de abraçar a rotina e ganhar uma sensação boa, talvez falsa, de um efetivo controle sobre as coisas que acontecem com a gente. Barrar, ainda que por um tempo, a enxurrada de caos e prever o que vai acontecer. Ter a segurança e o privilégio da rotina.
Desculpe te aborrecer com esse papo de velho, mas, no meu retorno, espero poder escrever mais vezes. Gostaria de te fazer um convite para observar melhor ou com mais carinho a rotina, a possibilidade de fazer as coisas de forma coordenada. Ainda não somos robôs, embora a pós-revolução industrial quase tenha nos transformado em máquinas. Desde o início do ano, para mim ficou a certeza de que é importante -ou melhor, necessário - dar uma brecada violenta na loucura da vida e fingir melhor que tenho algum tipo de controle. De repente, tenho mesmo.
LEITURAS
Foram muitas, mas vou deixar aqui as minhas favoritas do último mês:
Dragonero: A Origem
Dragonero é uma espécie de personagem de um mundo fantástico estilo RPG tradicional da editora Boneli. É muito bacana e as revistinhas preto e brancas são massa, mas a coleção é imensa, então, como estou indo na contramão de colecionar quadrinhos, peguei essa graphic novel que marcou o início da saga de Dragonero, linda e totalmente em cores. Orcs, terras distantes, tramas mágicas e dragões. Bem RPG, né? Arte linda e roteiro divertido. Ian, membro da antiga família dos varliedartos, os Matadores de Dragões, é o único que pode impedir que as hordas dos algentes tragam morte e destruição às terras civilizadas de Erondar. Vale muito o investimento, e que investimento, pois essa joia custa mais de cem pilas nas lojas especializadas. Procure por aí com desconto em sua Comic Shop favorita.
História da eternidade de Jorge Luis Borges
Coletânea publicada em 1936, brinca com movimento, mudanças e a forma como vemos o tempo enquanto jornada cíclica. Borges é um autor envolvente e cheio de elocubrações literárias e, por que não dizer, filosóficas. Não tenho muito mais o que falar, apenas recomendar a leitura desse – e porque não dizer – de todos os outros livros dele. Para adquirir, procure em sites de livros e sebos ou, o mais interessante, procure na biblioteca.
As Aventuras de Miss Boite e outras histórias a vapor
É um livro com contos da misteriosa Miss Boite, uma espiã que opera em um Brasil Império pertencente a um universo Steampunk. Prodigiosamente bem escrito e com aventuras e tramas divertidas. Não é de hoje que sou fã da autora Nikelen Witter, que tem livros bem bacanas, como Viajantes do Abismo e Territórios Invisíveis. Pode ser encontrado no site da editora AVEC.
Vejo vocês em breve.
Acabo de comprar, sob sua sugestão, "As aventuras de Miss Boite e outras historias a vapor", da Nikelen Witter. Eu e os filhotes haverão de nos deleitar!
Belíssimo texto, Tarsis. O debate em torno do tema central é mais do que necessário.
Já anotei: "A rotina leve e simples é uma camada de proteção."
A partir da rotina e suas demarcações podemos, claro, romper com o previsto, nos aventurar no desconhecido, mas teremos para onde retornar. E ao retornar, o que contar!